quarta-feira, maio 04, 2011

A bola corre mais que os homens.

  
Tenho 57 anos, mas nas Copas do Mundo, volto a ser o menino
de 14 anos que, em 1950, foi ao Maracanã ver uma vitória
esmagadora do moreno time brasileiro sobre uma então
vermelha Iugoslávia.

Tenho a memória de papai risonho e esportivo, aberto à
multidão que nos envolvia e ilhava como família, promovendo
a nossa dissolução em torcedores individuais e independentes.
Lembro-me igualmente da monumentalidade do estádio
e do barulho surdo da multidão que se acomodava como podia
dentro de suas entranhas. Multidão urbana alerta, interessada
e esperançosa, muito diferente da imagem consagrada dos
"populares", como ovelhas prontas para serem manipuladas.
E como a bola corre mais que os homens, testemunhava
o milagre do esporte de massa, lavando meus olhos com o verde-
amarelo de um Brasil que finalmente chegava à modernidade,
construindo o "maior estádio do mundo" e organizando o certame
que trazia ao nosso país milhares de "estrangeiros" que —
estávamos convencidos — eram superiores a nós.

Naquela tarde testemunhei a superioridade, vivi a vitória,
o respeito pelas regras e o papel da generosidade. Ficou no
meu coração a cara de um popular que torcia como um desesperado,
incentivando o Brasil com os mais cabeludos e embaraçantes
palavrões. O povo xingava e o Brasil goleava.

Numa consagrada crônica, Nelson Rodrigues, fala da "grãfina
de narinas de cadáver" que, em pleno estádio, pergunta
para o seu milionário acompanhante do momento, um desses
eternos Waltinhos, Diduzinhos, Jorginhos ou Olavinhos que
reinam nas nossas colunas sociais: "Quem é a bola?"
— Quem é a bola?

Hoje, em pleno calor do certame mundial e com os olhos,
a cabeça e o coração sintonizados na campanha do escrete brasileiro,
a pergunta aparece ainda mais insólita e surrealista.
E no entanto eu digo que a grã-fina estava absolutamente
correta, pois fazia, sabendo ou não, a grande pergunta. Ouso
afirmar, portanto, que, tanto no futebol quanto na vida, "quem
é a bola" é a grande, a única, a insofismável questão. De fato,
falar do jogador, do juiz, dos estádios, dos contratos, das táticas,
dos cartolas e do salário dos técnicos, como fazem todos,
é uma maneira ingênua e infantil de fugir do verdadeiro assunto:
o insondável e inefável caráter da bola. Porque, tirando
a bola, todos esses personagens que ela coloca a reboque e a
perseguem são seres racionais, logo quadrados e sordidamente
previsíveis. Só a bola, em sua plena, inocente e esférica irracioirracionalidade,
conforme viu a grã-fina, desperta dúvidas.

Pois o que conta no futebol não é bem a treinada vontade
humana, mas a sensual e caprichosa bola. Bola que simbo-
liza a gratuidade da vida e, de quebra, representa a sorte e o
azar. Bola que, como uma Capitu moderna, vai para onde não
queremos e, rendo movimentos indecifráveis, quase sempre
cai nos pés dos nossos inimigos. Bola que, como uma Carmem,
nos deixa loucos de ciúmes porque, depois de seduzir um primeiro,
acompanha desavergonhadamente um segundo e, em
seguida, flui natural e dengosamente para os sujos pés de um
terceiro. Bola que, como esse final de milênio, é imprevisivelmente
redonda e balofa, prenhe de rodopios, efeitos e movimentos
imprevisíveis. Bola, afinal, que se transforma em coração
e bate (surda, muda e absurda) dentro dos nossos peitos
sobejamente abandeirados.

Essa bola que tentamos domesticar, segurar e "comer".
Sem ela, poderia haver jogo, mas não haveria grandeza e ritual.
Pois a bola representa insegurança, descontrole e, é claro, o sal
da vida. Essa vida que nós temos que disputar com garra e
altivez como se cada dia fosse uma final de Copa do Mundo.
Bola que jamais será totalmente nossa.
Bola que corre mais que os homens...

Roberto Damatta  ,antropólogo e torcedor do Fluminense