domingo, junho 01, 2008

OS FANTASMAS DE AVELLANEDA E O MEDO.


Duas da manhã. Dois graus. Frio. El Cilindro de Avellaneda descansa depois de pisoteado por 50 mil boquenses e dois mil tricolores.

Quem vem lá?

No setor 5.

Duas sombras diluídas na névoa portenha. Dois fantasmas. Ohaco e Artola. O primeiro artilheiro da academia do Racing ( 1913-1919), o segundo até hoje homenageado por ter sido o primeiro presidente do centenário clube azul e branco.

Conversavam.

- O que houve aqui hoje? – perguntava Ohaco, que não teve a honra de jogar no estádio, inaugurado em 1950.

- Querido, nosso estádio foi mais uma vez metáfora da vida. Infelizmente sem o nosso time.

- Talvez seja esta a nossa grandeza. Inspirar.

- Pois, Ohaco, desde às dez da noite, petulantes brasileiros ousaram extirpar um pé do tridente.

- Orgulho, Respeito e Medo ao Boca Juniors.

- E nós conhecemos isso muito bem, não? – lembrou Artola.

- Conte-me mais. Cheguei atrasado.

- Como também se atrasaram os boquenses. Enquanto os atletas brasileiros faziam aquela brincadeira deles...

- Bobinho!

- Isto, divertiam-se com um bobinho no meio de campo, esquecendo-se da turba e da pressão que viria das arquibancadas.

- Saudades – lamentou Ohaco.

- Pois meu querido artilheiro, eis o que se passou. Trajando a mesma camisa que nosso rival Vélez usou por tanto tempo, este tal Fluminense, tão secular quanto nosso amado Racing, veio a nossa casa, orgulhoso, querendo fazer história, sem ser heróico.

- Sim, concordo, só os mais fracos e covardes são capazes de feitos heróicos. Os grandes apenas se impõem.

- Termino, pois, Ohaco, afinal já é tarde e precisamos continuar a descansar. Apesar do frenesi de nossos compatriotas, de um volume de jogo que lembrou nossas arrancadas do início do século passado, este orgulhoso Fluminense respeitou o Boca, deixou o jogo correr, procurou também fazer gols, não deixou a bola ser exclusividade portenha e saiu com um empate digno, sabendo que ainda não há nada ganho.

- Afinal o Boca é o Boca – afirmou o fantasmagórico Ohaco.

- Sim, Ohaco. Mas há muito tempo não encontrava alguém pela frente que simplesmente não tem medo da fama deles. E você sabe tão bem quanto eu, que eles são tinhosos na arte de aterrorizar todos os que tentam desafiá-lo em casa ou fora dela.

- Atlas, Cruzeiro e tantos outros.... Mas e a metáfora da vida, presidente? Onde está?

Artola pigarreou, soltou a fumaça condensada pela boca, como que fumando antigas cigarrilhas floridas, levantou, assustou-se com a temperatura fria do cimento que envolvia as cadeiras da arquibancada. E meio que conversando com as estruturas de metal suspensas, filosofou.

- Ohaco, tanto eu quanto você, pioneiros do futebol na América do Sul, encaramos a vida desta forma. Com respeito e orgulho. Medo jamais. Sem ele, pudemos escrever uma história junto com tantos outros. Pode ser que nosso Racing hoje seja isso, uma coletânea de histórias, uma névoa de lembrança nos mais jovens, uma potente nostalgia nos mais velhos. O ar hoje está pesado. Uma navalha afiada seria capaz de cortá-lo, como escreveria aquele menino colombiano que veio depois de nós. Afinal, 50 mil sofreram com a falha do aspirante Migliore, que teve medo e não segurou a bola do rapazote camisola 10 do Fluminense. O medo, Ohaco, existe dentro de todos nós. Talvez sem ele, não tenhamos a coragem de ter respeito e orgulho pelo que vem pela frente. Porém, ignorá-lo é a melhor das alquimias. Agora é hora do Boca não ter medo no Maracanã. E do Fluminense redobrar seu respeito e orgulho. Nos resta ir a Ezeiza reservar duas passagens para o Rio de Janeiro.

- Ora, Artola, e nós precisamos de avião para chegar ao Rio? – indagou um fantasma ao outro.

- Esqueci. Ou talvez seja medo de lembrar do que já mais não sou.

O último refletor apagou, o último funcionário da televisão argentina desplugou o último cabo. E Artola e Ohaco desceram as escadas, deixando atrás de si lembranças recentes e distantes do futebol.
Garombone - http://globoesporte.globo.com/ESP/0,,GEN750-6081,00.html